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Missiva #4


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David Abram
A Magia do Sensível
Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007

[233] Nada é mais comum às diversas culturas indígenas da Terra do que um reconhecimento do ar, do vento e da respiração como aspectos de um poder singularmente sagrado. Em virtude da sua penetrante presença, da sua completa invisibilidade e da sua influência manifesta em todos os géneros de fenómenos visíveis, o ar, para os povos orais, é o arquétipo de tudo o que é inefável, incognoscível, mas inegavelmente real e eficaz. Os seus óbvios laços com a fala — a sensação de que as palavras faladas são respiração estruturada (tentem pronunciar uma palavra sem expirar ao mesmo tempo) e que essas frases faladas tiram, de facto, o seu poder comunicativo deste meio invisível que se move entre nós — dão ao ar uma profunda associação com o significado linguístico e com o pensamento. De facto, a inefabilidade do ar parece aparentada com a inefabilidade da própria consciência, e não deveria ser motivo de surpresa que muitos povos indígenas interpretem a consciência, ou “espírito”, não como um poder que reside no interior das suas cabeças, mas antes como uma qualidade em que eles próprios estão dentro de, juntamente com os outros animais e as plantas, as montanhas e as nuvens.

[235] Entretanto, o cachimbo da paz é, para os Lakotas*, o mais wakan (sagrado) de tudo o que possuem. Esculpido em escuro barro vermelho que apenas de encontra nas planícies do norte — uma pedra considerada como sendo o sangue petrificado dos antepassados — o cachimbo sagrado é fumado de maneira ritual em todas as cerimónias lakotas, desde a cabana de sudação à Dança do Sol. O fumo do cachimbo torna visível a invisível respiração e, quando sobe do cachimbo, torna visíveis os fluxos e as correntes no próprio ar, torna visíveis as conexões que não se vêem entre os que fumam o cachimbo como oferenda e todas as outras entidades que habitam dentro do mundo: os povos alados, os outros povos que caminham e os que rastejam, e os múltiplos seres providos de raízes — árvores, ervas, arbustos, musgos. Além disso, o fumo, que se eleva, transporta as preces do povo lakota para os seres do céu — para o Sol e para a Lua, para as estrelas, para os seres do trovão e para as nuvens, para todos esses poderes abraçados por woniya wakan, o ar sagrado.

Woniya wakan — o ar sagrado — que tudo renova com a sua respiração.
Woniya, woniya wakan — espírito, vida, respiração, renovação — significa tudo isso.
Woniya — sentamo-nos juntos, não nos tocamos, mas algo está aí; sentimo-lo entre nós, como uma presença

John Fire Lame Deer, Seeker of Visions NY, 1972, p.119.

[260] No mundo oral e animista da Europa pré-cristã e camponesa, todas as coisas — animais, florestas, rios e cavernas — tinham o poder da fala expressiva, e o meio primário deste discurso colectivo era o ar. Na ausência da escrita, a expressão falada humana, quer se impregnasse em cantos, em narrativas ou em sons espontâneos, era inseparável da respiração exalada. A atmosfera invisível era, pois, o intermediário assumido em toda a comunicação, uma zona de subtis influências que se cruzavam, misturavam e metamorfoseavam. Este reino invisível mas palpável de sopros e aromas, de emanações vegetativas e exalações animais, era também o repositório oculto de vozes ancestrais, a pátria de histórias ainda por contar, de fantasmas e vivas inteligências — uma espécie de campo colectivo de significação de onde a consciência individual continuamente emergia e para onde continuamente se retirava, com cada inspiração e expiração.

[* Os Lakotas são uma tribo nativa americana. São também conhecidos como Teton Sioux (de Thítȟuŋwaŋ), eles são uma das três tribos da Grande Nação Sioux. As suas terras atuais situam-se no Dakota do Norte e do Sul]