Emanuele Coccia
Métamorphoses
Edições Payot & Rivages, Paris, 2020
Tradução MDC
A Arquitecturea Interespefícica
[255] O ambiente natural não existe. O mundo é sempre em todas as suas partes, concebido, desenhado, construído. E, o que é mais importante, o espaço é sempre concebido e construído por outras espécies, e por outras espécies que aquelas que o ocupam. É a razão pela qual as relações com o mundo não são nunca simplesmente físicas ou naturais, mas sempre políticas. Estar no mundo significa, para cada espécie, viver no espaço concebido e construído por outros. Viver significa sempre ocupar, invadir um espaço estrangeiro e negociar o que poderia ser um espaço partilhado.
[256] Partamos do fenómeno mais comum, mais trivial do ser vivo (ou, ao menos, dos animais): a respiração. A nossa relação com o mundo é, em primeira instância, aérea. O espaço para nós não é somente um espaço a percorrer, a ver, a tocar. Todo o espaço habitável deve ser um espaço respirável. O espaço é, então, antes de mais o objecto da respiração, o alimento dos nossos pulmões. Por esta razão, o acto arquitectónico inaugural não é a construção de muros, mas a climatização.
Temos o hábito de pensar que a respiração é o movimento mais natural, a relação mais evidente e ordinária, que nos liga ao mundo e ao espaço. Estamos habituados a pensar o ar como o mais natural dos elementos, aquele que existe na forma mais pura, para além de qualquer acto de manipulação da natureza. No entanto, o ar, com o seu teor de oxigénio de 21%, não é mais que um sub-produto da vida vegetal. É aquilo que resulta do metabolismo das plantas, o desperdício produzido pela sua existência. Por outras palavras, é uma entidade modificada por alguém, um artefacto. O derivado de um plano, de um projecto no mundo, que não provém dos homens ou dos indivíduos pertencentes a espécies ligadas à humanidade. No entanto, o resultado desta concepção acidental e não-humana torna o mundo habitável ao ser humano. Sabemos que a instalação definitiva dos animais sobre a terra só foi possível graças à metamorfose radical do espaço aéreo que rodeia e envolve a crosta terrestre, produzida pela invasão vegetal e a actividade das cianobactérias. Sem o oxigénio produzido por fotossíntese, a atmosfera terrestre não teria podido mudar sustentada- mente a sua composição interna e tornar-se o ambiente mais imediato de todo o ser vivo. Deste ponto de vista, o mundo é bem mais uma entidade vegetal do que uma entidade zoológica. Um jardim ao invés de um zoo. Se o mundo é um jardim, as plantas não são, ou não são verdadeiramente, ou apenas, o conteúdo deste jardim, os seus habitantes. São antes jardineiras em si mesmas. Reconhecer este facto significa que a Terra não tem nada de transcendente ou de original: é um objecto de jardinagem. Nós, como todos os outros animais, somos o objecto da acção de jardinagem dos vegetais. Nós somos um dos seus produtos culturais e agrícolas. Podemos dizer que as plantas não compõem a paisagem, mas são os primeiros paisagistas. Elas metamorfoseiam o mundo.
[258] Este facto muito simples merece ser generalizado, e ser considerado como o exemplo paradigmático da relação entre uma espécie e o espaço. Não são exclusivamente as plantas que produzem a aparência do nosso mundo, que moldam e remodelam a Terra, mas também cada ser vivo. O agenciamento arquitectónico ou urbano não é algo que se limite à acção do ser humano, é a faculdade mais genérica de um ser vivo.
É a consequência a retirar da evidência da nossa natureza animal: se o espírito é um assunto de átomos, tecidos e moléculas, então o espírito está em todo o lado, está em todas as espécies vivas. A biologia é então uma fenomenologia do espírito cósmico. E a razão exprime-se através de formas não-humanas, que herdámos e interiorizámos.
[259] Cada espécie é um actor consciente, capaz não somente de errar e de fazer más escolhas, como de comportamentos arbitrários, que não relevam necessariamente daquilo que é melhor e mais útil para si. Toda a espécie viva tem assim uma relação também estética com o mundo que a rodeia.